21.12.08

Um relato a parte.



1

Quando ouvi a voz do velho Malaquias não a reconheci de imediato, havia mais de 20 anos que não o via. Lembrava-me bem de sua aparência, os olhos vivos e o sorriso cansado, que sempre me recebiam quando voltava da escola, e a cabeleira branca, mas ainda vasta, de velho que era já naquela época. Queria que eu fosse até lá, o mais rápido possível, dizia estar morrendo, e queria saber o que eu faria da casa. Quando nos mudamos de lá, mamãe e eu, ela não quis se desfazer da casa onde morara a maior parte da vida e tivera seu filho, ficou então ao encargo de Malaquias, que morava nunca soube eu por que, em um cubículo aos fundos do quintal, cuidar da casa até que eu ou ela voltássemos. Mamãe morreu muito antes de ter a oportunidade de varrer aquela casa sempre empoeirada outra vez, e eu nem sequer lembrava da existência da mesma.

Ao chegar fui recebido por um Malaquias com o mesmo sorriso cansado, ainda que tivesse agora muito menos dentes, me abraçou com certa dificuldade, uma vez que havia me tornado muito maior que ele.

- Senhor Marcelo.. - foi tudo que conseguiu dizer.

- Por que tanta formalidade, Malaquias? Você já me viu de fraldas.

- Oras, não ficaria bem eu te chamar de moleque arteiro, você dá quase dois de mim.

Ri do comentário. Às vezes, na infância, eu tinha dúvidas se ele saberia realmente o meu nome, de tanto me tratar por moleque, pestinha, bagunceiro, e tantos outros apelidos que só garotos como eu conseguiam ganhar em tão pouco tempo. Sentamos à mesa da cozinha, mais empoeirada do que eu podia me lembrar, e Malaquias me serviu um café, nas mesmas xícaras com animais que mamãe tanto gostava e não levou por medo de se quebrarem, escolhi a do elefante, a minha preferida, lembrei quando pensava que tanto fazia por que lado se segurasse a xícara, já que o elefante tinha dois rabos. Enquanto tomava aquele líquido insosso, que deveria estar pronto no mínimo há 3 dias, Malaquias me contava como havia cuidado bem da casa e como tinha começado a mancar há alguns meses.

- Além do mais, sinto que não tenho mais muito tempo. Apesar de nunca ter contribuído muito, acho que já fiz o que tinha de fazer por aqui, não demoro a partir agora.

- Deixe de besteiras, Malaquias, está igual como quando saí desta casa pela última vez. Ainda posso te imaginar subindo na goiabeira para alcançar os galhos mais altos.

Dessa vez quem riu foi ele. Malaquias sempre que trepava na goiabeira que tínhamos aos fundos, se esticava para pegar os frutos mais distantes, depois que descia e íamos analisar a qualidade de nossa colheita, passava a mão na minha cabeça e dizia, piscando um olho: deve-se sempre se esforçar ao máximo se não quiser goiabas bixadas. Acho que era o jeito dele de me dizer que sem força de vontade eu não chegaria a lugar nenhum, acabou dando certo mesmo eu não achando este um exemplo muito bom, sempre preferi laranjas.

- Não tente me iludir, senhor Marcelo. Eu posso sentir minhas forças se esvaindo. Se te chamei aqui, não foi a toa.

- Imagino que não, mas também não deve ter me chamado só pra tomar um café.

- Já faz mais de 30 anos que eu estou nessa casa, senhor Marcelo, muito antes do senhor nascer, mas apesar de morar há tantos anos aqui, ela não é minha. O que fará com ela?

Não havia pensado nisso. Era lógico, a casa por direito era minha, no papel era minha, mas eu sequer lembrava que ela existia até 2 dias atrás. Pensei por uns instantes antes de responder.

- Devo vendê-la, ou alugá-la, não sei. Não tenho interesse em voltar para cá. Acha que consigo algo nela no estado em que está?

- Talvez com uma boa faxina, e uma capinada no quintal, desde que fiquei coxo não tenho mais como cuidar da casa. Mas sua mãe não gostaria.

A menção ao quintal me fez ignorar a última observação. Apesar de ter lembrado da goiabeira, não a considerava parte do quintal, do meu quintal, considerava parte do quintal de Malaquias, que mesmo morando em um cubículo, no meu quintal, para mim tinha o direito de ter o seu próprio, sendo assim eu não entrava na área de terra batida ao redor de onde morava, que era onde ficava a goiabeira, sem sua permissão. O quintal, o meu, era o lugar que eu mais gostava daquela casa, era onde passava minhas tardes e inventava minhas brincadeiras, onde tinha feito a maioria das minhas cicatrizes, existentes até hoje, e onde levantava a maior parte da poeira presente na casa. Pedi para Malaquias que me levasse até lá.

Estava bem diferente do que me lembrava. O chão mal cimentado, que antes deixava infiltrarem-se pequenos ramos de ervas daninhas e algumas pequenas flores de pétalas brancas, agora estava completamente coberto de mato, os tijolos nunca explicados que ficavam a um canto do terreno haviam desaparecido, o canteiro de begônias de mamãe ainda estava lá, apesar de estarem todas secas e mortas, curvando-se em direção ao solo, os muros tinham agora alguns buracos que não existiam antes, de onde saíam rastros de terra vermelha que brigavam por espaço com as trepadeiras que chegavam até as casas vizinhas, alguns brinquedos antigos, enferrujados, estavam jogados ao fundo, ao lado do antigo cubículo de Malaquias, que não passava agora de uma pilha de entulhos, e de onde ficaria a goiabeira, que não existia mais. Fechei os olhos por um momento e percebi que o cheiro ainda era o mesmo, uma mistura de mato pisado com terra molhada, ainda que a única parte unicamente de terra, que era o quintal dentro do quintal, também estivesse coberta por plantas de diferentes alturas. Sem pensar muito, tirei meus sapatos e fui andando em direção aos fundos, sentindo o mato a me fazer cócegas aos pés e o olhar sorridente de Malaquias as minhas costas. Quando fui me virar para lhe falar senti uma pontada no calcanhar, me desequilibrei e ao cair meus joelhos aterrissaram em dezenas de pedaços de algo duro e frio. Malaquias veio correndo ao meu socorro e depois de me ajudar a levantar e me levar com dificuldade até uma cadeira na cozinha constatou que havia cortado o pé em um caco de vidro, felizmente meus joelhos tinham sofrido apenas alguns arranhões.

- A culpa foi minha, senhor Marcelo, esqueci que andei jogando algumas garrafas lá nos fundos, não achei que tivessem se quebrado. - disse, enquanto balançava a cabeça com vigor e tentava em vão conter meu sangramento com as mãos. - Vou buscar algo para fazer uma atadura, não saia daí.

Fiquei pensando aonde poderia ir com o pé latejando de dor e em quantas vacinas teria que tomar enquanto olhava a poça formada pelo meu sangue crescendo pelo chão feito leite fervendo. Foi quando lembrei da real importância daquele quintal, do que o tinha feito realmente se tornar especial. Foi quando lembrei de Guilherme.

3.10.08

Um dia quente de verão.


Foi na casa em Dachau, no verão passado. Eu estava na varanda, rodeado pelas cinzas dos cigarros, tentando me manter acordado na vã esperança de uma boa noite de sono. Ela corria pelo jardim brincando com o cachorro de titia, um mastim, de cara amassada e pêlo tão negro quanto seus cabelos, a ponto de se fundirem quando rolavam pelo chão. Vez ou outra vinha até a varanda e olhava inquisidoramente para mim, enquanto afagava a cabeça do animal e me perguntava o que eu tinha escrito até então, antes de voltar a correr com seu sorriso infantil.

Era um dos dias mais quentes do ano. Mesmo na sombra o suor escorria pelo meu rosto cansado, enquanto ela, apenas alguns anos mais nova que eu, parecia não se importar enquanto pulava e abraçava uma bola peluda debaixo do sol escaldante, que refletia em seu vestido azul-claro e vinha diretamente em meus olhos.

- Venha também, Nikolay, o dia está muito bonito para ficar aí escrevendo!

Eu me limitava a ameaçar um sorriso e apertava os olhos, balançando a cabeça de um lado para o outro. Ela ria com um guincho alto e instigava o cachorro para cima de mim, que vinha correndo e parava aos meus pés olhando para cima, balançando o rabo, antes de voltar para os braços dela ignorando a minha impassividade.

Ficamos assim durante toda a tarde, até ela vir se sentar, exausta, ao meu lado. O cachorro veio logo atrás e deitou-se sobre seus pés.

- Acho que ele cansou também, não é garoto? - ela disse, fazendo festa em sua cabeça, enquanto ele se virava e contorcia as pernas pedindo que afagassem sua barriga.

Fiquei assistindo a cena por alguns instantes antes de pegar a caneta e escrever uma única frase no topo de meu caderno, não podendo conter um sorriso.

- O que foi? - perguntou ela ao perceber minha expressão, inclinando a cabeça e me olhando curiosamente.

O que eu podia dizer? Balancei a cabeça vagarosamente e sublinhei a frase duas vezes, antes de fechar o caderno. Logo eu, que prometi nunca mais me apaixonar?

17.9.08

Banalidades.


Dois senhores esperam o bonde, lado a lado, em algum lugar de Paris.

O primeiro segura o chapéu cor cobre na cabeça e tenta fechar o sobretudo cinzento, como o céu que parece refletir os paralelepípedos da rua; olha as pessoas passarem abrindo guarda-chuvas e correndo de cabeça baixa, tentando se proteger do vento. Enquanto o segundo, mesmo parado, abaixa a cabeça calva para acender um cigarro e olha para os dois lados com seus grandes olhos azuis, sorrindo, contrafeito, antes de exclamar:

- Acho que vai chover..

16.9.08

Desilusão.


Depois de horas me revirando na cama, decidi abandonar a vã tentativa de esquecer e ir ao café às margens do rio.

Era um local de absoluto silêncio, quebrado apenas pela passagem tranquila e negra do Danúbio. As mesas do exterior, retiradas devido ao frio inverno de Viena, estavam empilhadas em um canto, enquanto apenas três se mantinham lá dentro, vazias, cobertas com aventais prateados como a chuva que caía toda noite. O chão de linóleo preto contrastava com as paredes originalmente cor creme, que agora mais pareciam roupas encardidas devido a fumaça dos inúmeros cigarros fumados ali diariamente. O aroma era uma mistura de café preto com o cheio forte do couro que recobria as cadeiras já desgastadas, quatro em cada mesa. Duas lâmpadas pendiam do teto e lançavam uma iluminação indireta sobre a mulher de avental vermelho e lenço branco na cabeça que me olhava, tentando demonstrar-se solicita quando era evidente que só queria partir dali. Tinha o rosto delicado de quem acabara de sair da juventude, o nariz fino e uniforme, levemente empinado na ponta, as maçãs do rosto coradas, como se tivesse tomado sol recentemente, e dois olhos negros como piche - os quais não suportei encarar por muito tempo - emoldurados por cabelos escorridos, também negros, que escapavam por detrás do lenço. Era extremamente parecida com Cécile, e meu primeiro pensamento foi virar as costas e ir embora. Mas que diferença faria? Agora todas eram parecidas com Cécile. Sentei-me, acendi um cigarro, e pedi um café.

Tive tempo apenas de dar uma tragada quando a xícara chegou, trazendo em seu interior um grande olho preto sem brilho e esfumaçante. Foi quando percebi que ia começar.

Primeiro a angústia. A sensação de vazio, de desespero, de infelicidade. As pessoas e as coisas a minha volta deixaram de importar, e eu achei bom que fosse assim. Afinal, o que adiantava ainda enxergar, se o rio correndo despreocupado rumo ao distante Mar Negro - negro, veja só -, a noite sem estrelas iluminada somente pela lua, o chão opaco como óleo queimado, e até mesmo a xícara de café, uma mísera xícara branca cheia de um líquido preto, me lembravam seus olhos? Restou-me fixar o olhar na mesa que tentava, sem sucesso, brilhar na parca luz que me cercava, já que nem fechar os olhos podia, correndo o risco de ser devorado pela escuridão latente.

Depois, o ódio. Lógico, como poderia não sentir? Tanto tempo dedicado a amar, a sonhar, a ter esperanças, para descobrir que não passou de tempo perdido! Foi rápido. Antes de pensar algo que pudesse me arrepender depois, já havia passado. Não por ter tido a consciência que, na verdade, não foi tempo perdido; porque mesmo ao entender que os momentos passados com ela foram os melhores da minha vida, não foi o suficiente para acalmar meu ímpeto irracional, e sim a compreensão que o único que é capaz de transformar o que era amor em ódio é quem está errado. Poucas vezes me envolvi com um ou com outro, e deve ter sido este meu erro.

Nesse ponto, por último, veio o pior.

A dor. Simplesmente, a dor. Não era uma dor física exatamente, e ao mesmo tempo, doía por todo meu corpo. Era a desilusão, o consentimento que era o fim e a pura vontade de esquecer, jamais atendida. A certeza da volta das noites em claro, da depressão atenuante e dos momentos andando a esmo. E essa, parecia que ia durar para sempre. Ainda parece.

Não sei quanto tempo se passou, se horas, dias ou meses, mas quando voltei a mim uma pálida luz azulada começava a surgir no horizonte, meu café esfriara, meu cigarro fora consumido pelo cinzeiro, e a garçonete vinha em minha direção após deixar uma xícara de algo fumegante defronte uma mulher ruiva, de olhos claros, que agora sentava na mesa ao meu lado e fumava olhando tristemente o nada.

- Mais alguma coisa, senhor?

Diante a minha falta de opções, e a percepção dos milhares, milhões, de eu te amo trocados em vão todos os dias, decidi me preocupar apenas em acender outro cigarro e pedir mais um café.

14.9.08

Era.


A primeira coisa que fiz ao voltar, foi visitar aquela colina ao sul da cidade, perto do rio, onde havia os pomares e a velha ponte de pedra. A grama verde que roçava nossos pés enquanto corríamos prestes a rolar ladeira abaixo, e o vento que fustigava seus cabelos morenos, exalando um aroma que se misturava ao de morangos e despertava um amor tão grande dentro de mim, ainda eram os mesmos.

Naquele dia você usava um vestido branco, que revelava suas costas macias e seus joelhos ainda roliços de menina, levava na orelha uma flor amarela, que eu mesmo subi na árvore ao lado do moinho para colher, enquanto você sorria aflita e olhava pra cima com os olhos brilhantes, semi-cerrados pelo sol, que me davam tanto medo e alegria.

Corremos até as macieiras e você pegou duas, mordendo uma com delicadeza e me entregando a outra com um olhar de ternura que nunca mais esqueci, com um sorriso tímido que iluminava sua face sob o sol já alto e me encorajava a avançar. Quando me dei conta já estava sentindo seus lábios, rosados como uma romã, contra os meus que tremiam de excitação ante seu corpo quente, que eu apertava contra o meu e envolvia em um abraço infinito.

Nos encontramos mais três vezes no mesmo lugar, então você partiu. Não me disse por que, nem pra onde, simplesmente não apareceu mais. Quando fui a sua casa a encontrei vazia, aberta, com apenas um ou outro móvel pesado e velho demais para se carregar, uma boneca esfarrapada, quase sem cabelos, e uma flor amarela no chão. E isso foi tudo.

Todas as noites me pergunto o que aconteceu, por que você partiu? Por que ao menos não me avisou? E fico me revirando na cama tentando tirar da memória aqueles cabelos mais negros que a escuridão do quarto, o sorriso embaraçado que fazia eu me sentir tão contente, e o jeito engraçado de pisar na grama fofa enquanto fugia de mim em direção ao pomar, rindo como uma criança que avista um brinquedo. Mas não nesse dia, nesse dia senti o cheiro dos morangos e o vento no rosto mais uma vez, e era tão bom. Era tão bom.